África enfrenta o avanço da pandemia e seus efeitos colaterais
Continente ultrapassa 1 milhão de casos de covid-19 e especialistas apontam para interrupção nos programas de combate a aids, malária e tuberculose
Elena Gómez Dias*
Os dados do domingo (09/08) confirmam as piores previsões: a covid-19 se espalha de forma implacável pelo continente africano, que já acumula mais de um milhão de casos registrados em 47 países e mais de 20 mil mortes. Nos últimos meses, houve um aumento exponencial. Metade desses casos (mais de 553.000) correspondem à África do Sul, epicentro da pandemia no continente e o quinto país do mundo com maior número de infectados. É seguido muito atrás por países como Nigéria (46.140), Gana (40.533), Argélia (34.693) e Quênia (25.837).
Em um artigo anterior, argumentamos que a resiliência e a experiência africana na gestão de epidemias poderiam ser seu melhor trunfo no enfrentamento da covid-19. No entanto, a falta de testes para diagnóstico e de recursos médicos e profissionais de saúde em número insuficiente parecem estar minando o sucesso da luta de África contra a pandemia.
O número relativamente baixo de casos de coronavírus na África há alguns meses aumentou a esperança de que alguns países conseguiriam se livrar do pior da pandemia. Mas, no final, parece que era apenas uma questão de tempo. Nem mesmo o país mais desenvolvido sabe ao certo o número total de pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2. Nós apenas conhecemos a situação daqueles que foram testados. Isso significa que a contagem de casos confirmados depende do número de testes que um país realiza. As taxas de pessoas testadas (por 1.000 pessoas) variam de 148 na Islândia a 0,76 na Índia. Na África do Sul, em 3 de maio de 2020, a taxa de teste era de 4,5. Sem evidências, não há dados.
Se olharmos para o número de PCRs por país, verifica-se que existem locais onde o número de casos confirmados é elevado em relação ao número de exames realizados. Isso sugere que o número de testes é insuficiente para monitorar adequadamente a pandemia. Nesses locais, o número de infectados reais pode ser muito maior do que o confirmado. Muitos dos países africanos estão nessa categoria hoje. Por exemplo, República do Congo, Nigéria, Senegal, Mali, Costa do Marfim e Togo. Há dois meses, Chikwe Ihekweazu, chefe do Centro de Controle de Doenças da Nigéria (CDC), fez um apelo desesperado no Twitter para conseguir mais testes de PCR para seu país.
Com este panorama, a União Africana lançou, em junho, uma iniciativa denominada PACT (Parceria para Acelerar os Testes na África), na qual prometia fornecer, no prazo de seis meses, 90 milhões de kits de diagnóstico aos países membros. Ainda assim, eles podem não ser suficientes para conter a maré de covid-19 em um continente com uma população de 1,3 bilhão de pessoas. Na verdade, mesmo com os recursos do PACT, estima-se que faltariam 25 milhões de exames para que o continente se equiparasse à capacidade diagnóstica de muitos países europeus.
Além do PACT, a comunidade científica africana está recorrendo às suas colaborações internacionais para aumentar suas capacidades. Como resultado, laboratórios de diagnóstico já foram instalados em Uganda, Senegal e Gana. No entanto, a OMS tem dúvidas sobre a eficácia desses testes, que nem sempre obedecem aos padrões internacionais.
Embora os números variem entre os países africanos, em termos continentais apenas metade da população tem acesso aos cuidados primários; os sistemas de saúde não conseguem atender nem a metade do necessário – em tempos sem pandemia. Entre os desafios enfrentados por países africanos para aumentar sua capacidade de diagnóstico, estão a instalação de laboratórios de referência, o aumento do número de profissionais de saúde e o auto-abastecimento de suprimentos médicos.
Aids, malária, tuberculose: efeitos colaterais
Além disso, devido à pandemia, a cooperação internacional foi prejudicada. Países como os Estados Unidos estão limitando o acesso a suprimentos médicos. A União Europeia também orientou os países membros a limitar a exportação de equipamentos de proteção individual e medicamentos para tratar complicações provocadas pelo novo coronavírus. Diretor dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças em Addis Abeba, John Nkengasong escreveu artigo na revista Nature para apontar que os países africanos estão sendo excluídos do mercado global de testes para diagnóstico da covid-19.
Além do impacto do confinamento na educação, nos sistemas de saúde, na segurança alimentar e na economia, a crise sanitária na África é agravada pelos efeitos colaterais que a pandemia do coronavírus está tendo nos programas de saúde voltados para outras doenças como tuberculose, malária e Aids que matam milhões de pessoas todos os anos no continente.
O Fundo Global de Combate a Aids, Tuberculose e Malária apresentou dados da primeira onda da pandemia mostrando que 85% dos programas de HIV, 78% dos voltados para tuberculose e 73% dos programas para malária haviam sido interrompidos. A OMS alerta que esses problemas vêm afetando campanhas de distribuição de mosquiteiros e o acesso a medicamentos contra a malária. Os programas epidemiológicos estão prevendo o dobro de casos de malária na África Subsaariana nos próximos anos. Isso nos levaria a voltar 20 anos na luta contra a doença.
Nosso projeto – financiado pelo Fundo Covid-19 do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), da Espanha, e realizado em colaboração com instituições em Burkina Faso e na Guiné Equatorial – visa lançar luz sobre esta questão. Por um lado, contribuir para o diagnóstico de covid-19 realizando testes sorológicos rápidos e testes de PCR. Por outro, estimar as taxas de incidência da malária antes e depois da pandemia.
A África tem ampla experiência no gerenciamento de emergências de saúde. Existe uma ação multilateral (Estratégia Conjunta da África Continental para a Pandemia de Covid-19) que coordena os esforços das agências da União Africana e dos países membros, a OMS e outros parceiros, para vigilância, prevenção e controle). No entanto, a África também precisará de financiamento para pagar as vacinas e os possíveis tratamentos e para aumentar o número de ensaios clínicos locais.
Apesar do fato de a África ter o maior fardo de doenças em todo o mundo – um quarto do total – representa apenas 2% dos ensaios clínicos globais. A Comunidade de Ensaios Clínicas, iniciativa promovida pela Academia Africana de Ciências (AAS), objetiva acabar com esta lacuna na investigação clínica. Um passo adiante neste sentido é a participação da África do Sul no ensaio clínico da vacina Oxford / AstraZeneca). Mas, para garantir o acesso à futura vacina, a África deve ser parte integrante da pesquisa clínica contra covid-19. Não apenas como meros objetos de pesquisa, mas como líderes.
Nas palavras da escritora, política, feminista e ativista antiglobalização Aminata Traore: “Estamos transbordando de potencial e eu me revolto contra a natureza do sistema e sua capacidade de destruir a esperança na África”.
*Pesquisadora do Instituto de Parasitologia e Biomedicina, do CSIC (Conselho Superior de Investigações Científicas), da Espanha
(Tradução de Oscar Valporto)