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Faraós são eternas

Publicação: 10 de março de 2021

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Sempre a chamei de minha Faraoa. Adorava brincar com ela e provocar as reações enérgicas e iradas da senhora baixinha, gordinha, cheia de entusiasmo e afeto. Nadja era uma líder. E uma agregadora. Eu a conheci por meio do trabalho pioneiro de mobilização social em tuberculose que fizemos a partir de 2002 no Rio de Janeiro e em São Paulo. Lembro-me da primeira reunião em 2003 com ela, na SES-SP na Dr. Arnaldo, com Lia Selig, então Chefe do Programa de TB do Estado do Rio e Vera Galesi, então Chefe do Programa de TB do Estado de São Paulo.

Participamos da organização de um grande evento de mobilização contra a tuberculose em Guarulhos em março de 2004; daí por diante estivemos na mesma estrada da mobilização social na luta contra a tuberculose. Vera teve a sensibilidade de perceber naquela senhorinha ativista da segurança alimentar o potencial para encabeçar a luta contra a tuberculose em São Paulo. E estava certíssima. Me lembro de no início ter alguma desconfiança sobre a capacidade daquela senhora baixinha em mobilizar ou sensibilizar o borbulhante movimento de aids de SP, ainda bastante refratário a discutir a tuberculose como tema prioritário.

 Pois foi exatamente pela diversidade de experiências que o movimento social em tuberculose cresceu. E a contribuição de Nadja foi fundamental. O ativismo em TB cresceu muito; ela ajudou a garantir que o movimento seja composto por pessoas que estão na linha de frente comunitária, e que ele tenha compromisso com a atenção às pessoas em situação de vulnerabilidade. A criação da Rede Paulista de Controle Social para a Tuberculose em 2004, que ela liderou pelos primeiros tantos e difíceis anos, fez a ponte com o Fórum de ONGs de Luta contra a Tuberculose no Estado do Rio de Janeiro desde 2003, expandindo a conscientização para a carga e gravidade da TB em nosso país. Em 2004 Nadja já tinha interlocução nacional na tuberculose, particularmente em função da REDE-TB – onde coordenou a mobilização social por vários anos. Ainda em 2004, ela foi corresponsável pela criação do Fórum Parceria Brasileira contra a Tuberculose, primeira iniciativa nacional repercutindo a criação da Parceria Global contra a Tuberculose, a Stop TB Partnership. Daí por diante, o seu engajamento só cresceu. E de tantas e tantos mais. Nadja era figura certa e segura em qualquer atividade local ou nacional relevante da luta contra a tuberculose.

 Certamente, o seu diferencial foi ter agregado pessoas simples, de fala mansa e baixa, à mobilização contra a TB e tê-los colocado na liderança de diversas atividades. Aquela senhora de português impecável e fala firme sempre defendia a participação, a escuta e a visibilidade das pessoas mais simples. Priorizava a atenção aos privados de liberdade e suas famílias, às populações em situação de vulnerabilidade extrema. Me lembro há mais de dez anos em certa reunião nacional de pesquisa ouvir o comentário ao pé do ouvido, “mas o que essas pessoas têm a me ensinar? Elas mal falam português direito!”, referindo-se aos ativistas que ela ajudou a trazer. Pois tinham, e como tinham, e têm a ensinar! Não só a aprender.

Nadja sempre mostrou isso. A liderança de Nadja em frentes de pesquisa e na formação do Comitê Comunitário de Acompanhamento em Pesquisas em Tuberculose no Brasil, CCAP TB Brasil, trouxe esse diferencial: as discussões precisam ser inclusivas, as pesquisas precisam ser entendidas de forma simples por qualquer pessoa. E tem que servir à elas! A ciência tem que produzir benefício social. A longa tragédia que ora vivemos é exatamente pelo descaso com o país e com o próximo, que temos tão arraigados em nós. Desprezamos a nós mesmos.

A educação acerca da formação social do Brasil nos levou a essa situação. Vivemos o resultado de uma eterna repetição por nós do modelo colonial de exploração e utilização do outro, a quem não reconhecemos enquanto concidadão ou detentor de direitos e capacidades. Pilhamos do público o que nos interessa; quem ou o que fica é resto.

Fomos educados a pensar que o bom é o que está fora, e que aqui é lugar de passagem, de exploração, portanto vamos sem freio. Pois é hora de parar, reavaliar e recalibrar. Estamos todos rotos. A luta vai ser longa. Modificarmos essa situação vai exigir de cada um de nós entender como funcionamos, e pensarmos em que país queremos. Se quisermos paz social e justiça de fato para todos, teremos que funcionar de forma diferente, firme, enérgica e irada, como fazia Nadja.

A lembrança do seu olhar surpreso, divertido e terno vai ficar na minha lembrança toda vez que eu a via silenciosa numa reunião e eu a provocava, dizendo que estava faraônica… pois é. O seu olhar é eterno.

Ezio Távora 06-março-2021

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