Últimas Notícias

Rio é a cidade brasileira com mais casos de tuberculose registrados no século XXI

Na Rocinha, incidência da doença é dez vezes maior que a média do país, como apontou o diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)

A dona de casa Norma Francisca de Souza, de 61 anos, tem o ar triste de quem convive com um mal sempre à espreita. Desde 2019, ela perdeu dois irmãos para a tuberculose, o último há quatro meses. Em janeiro, seu filho Daniel, de 40, contraiu a doença, e está na fase final do tratamento numa clínica da família. Mãe e filho moram na Rocinha, em ambiente insalubre, numa casa construída sobre uma vala, com paredes mofadas e umidade que espalha pelo ar um cheiro difícil de suportar. Vivem em condições que são um retrato da favela onde a incidência da doença é dez vezes maior que a média do Brasil, como apontou o diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) Jarbas Barbosa, em visita ao país no mês passado.

Explosão de casos

O Complexo Penitenciário de Gericinó, segundo ele, é outra preocupação, e faz o bairro de Bangu, na Zona Oeste, liderar as novas notificações da doença. Dados do Ministério da Saúde dão uma dimensão do problema. Desde 2001, o estado do Rio registrou cerca de 324 mil casos de tuberculose, ficando atrás apenas de São Paulo (com pouco mais de 438 mil confirmações). Só na cidade do Rio foram 166 mil diagnósticos, quase 10% de todos os pacientes do Brasil, o que torna a capital fluminense o município com mais casos no país neste século.

— A pandemia prejudicou todos os programas de saúde pública, inclusive contra a tuberculose, porque, durante os picos de transmissão, as pessoas não buscavam o diagnóstico e ainda havia quem descontinuasse o tratamento. É preciso recuperar esse impacto negativo — apontou Barbosa.

A explosão de casos na Rocinha se explica em parte pelas condições de moradia da população, em construções próximas umas das outras, em locais onde a luz do sol não consegue chegar. Alguns imóveis ainda exibem nas paredes marcas indicando que seriam removidos em fases antigas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mas, desde então, nem as casas saíram de lá, nem o saneamento básico chegou a esses becos e vielas sem ventilação — o que só piora o quadro.

Nessa conjuntura, no ano passado a cidade do Rio teve o maior número de confirmações de tuberculose na série histórica oferecida pelo sistema da prefeitura: 9.813 ocorrências. A doença vinha em tendência de queda até 2007, quando subiu e se estabilizou. Entre 2012 e 2015, voltou a cair, mas desde 2016 vem crescendo — com exceção de 2020, por conta da pandemia. Este ano, só até julho, foram registrados 5.631 casos.

Os números mostram ainda que, entre os doentes do município do Rio, em todos esses anos, cerca de 24 mil abandonaram o tratamento. No total, 5.281 morreram, como os dois irmãos de Norma, a moradora da Rocinha.

A tuberculose em números — Foto: Editoria de arte
A tuberculose em números — Foto: Editoria de arte

O filho dela, Daniel, vai todos os dias à Clínica da Família Maria do Socorro, na Curva do S, buscar medicamentos. A ficha de acompanhamento dele não tem falhas e mostra que ele está no final do tratamento. O mesmo aconteceu com Alex Marinho da Silva, de 43, morador da Travessa 90. Ele já até voltou a trabalhar, como servente de obras. Mas lembra bem das dificuldades depois que os sintomas apareceram, em janeiro deste ano.

— Estava sentindo um ardor no peito. Fui à clínica da família e bateram um raio X que confirmou duas inflamações no pulmão. Comecei a cuidar imediatamente — conta Alex.

Saneamento: x da questão

Ainda na Rocinha, Ângela Márcia Alves, de 45, é a imagem da fragilidade provocada pela doença. Ela conta que, nos últimos nove meses, enfrentou cinco internações, a última no Hospital Estadual Santa Maria, em Jacarepaguá, especializado no tratamento de pacientes de tuberculose e doenças pulmonares. Ela diz que está curada, mas ainda combate as sequelas e precisa ganhar peso — perdeu 15 quilos durante o tratamento: na balança, saiu de 55 para 40.

Até o mês passado, Ângela seguia em acompanhamento médico no Centro Municipal de Saúde Dr. Albert Sabin, na Estrada da Gávea, e tomava quatro medicamentos por dia. Ela passava a maior parte do tempo deitada numa cama instalada na sala, com uma única janela.

— Nasci aqui e nunca teve saneamento. É uma luta. Só fazem promessa. É um lugar fechado com muitas casas juntas, sem bater sol e com muita umidade — lamenta.

Maria Edileuza Braga, que é presidente do Conselho Distrital de Saúde da AP 2.1 (que reúne bairros da Zona Sul, incluindo a Rocinha), também aponta a falta de saneamento como um problema crônico que agrava a situação nas comunidades.

— São valas e valas abertas, com esgoto escorrendo. A pessoa não vai ficar boa nunca — diz ela, que participa na Rocinha do projeto Comunidade Compassiva, no qual moradores se unem para auxiliar pessoas que vivem com doenças como câncer e Aids, normalmente em fase terminal, a maioria com histórico de tuberculose. — Há dois meses perdemos, numa mesma semana, três pacientes, um atrás do outro. Dizem que a doença foi controlada. Mas, como Conselho, sabemos que não está. Isso só vai acontecer quando a comunidade tiver saneamento básico —cobra.

Essa é uma precariedade que não se restringe à Rocinha. Segundo o ranking do Saneamento de 2023, do Instituto Trata Brasil, a capital é a 48ª das grandes cidades do país com melhor saneamento. Com problemas históricos, o Rio corre contra o tempo para universalizar a coleta de esgoto, com investimentos feitos a partir da concessão da Cedae.

Fonte: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/08/21/rio-e-a-cidade-brasileira-com-mais-casos-de-tuberculose-registrados-no-seculo-xxi.ghtml